A casa da democracia

6 minute read

Nos meses que precediam maio de 2019, os eleitores letões depararam-se em Riga com cartazes de campanha do Partido Social Democrata da Letónia com a foto de… um holandês. Nesses cartazes lia-se “Nosso presidente para o futuro da Europa” e o holandês em questão era Frans Timmermans, candidato do grupo parlamentar europeu de centro-esquerda nomeado à Presidência da Comissão Europeia. Um pouco confuso? Passo a explicar.

O Parlamento Europeu, um dos dois órgãos oficiais de codecisão legislativa, consiste num hemiciclo composto por 705 eurodeputados de 27 estados-membros diferentes. Tendo em conta as suas identidades partidárias, estes ficam divididos por 7 grupos parlamentares ideologicamente distintos e um grupo de membros “não inscritos”. Anteriormente ao início das eleições europeias, cada grupo tem a liberdade de nomear as suas “cabeças de lista” ou “candidatos de primeira linha”, também conhecidos no jargão de Bruxelas como o “spitzenkandidat”, para a futura presidência executiva na Comissão Europeia — no que ficaria conhecido como o processo Spitzenkandidaten. Após a eleição dos eurodeputados, o grupo que obtivesse mais assentos parlamentares tornar-se-ia o grupo mais apto para nomear o seu candidato como o próximo Presidente da Comissão durante os subsequentes 5 anos.

Mas de que “grupos” se trata? Começando por ordem decrescente em número de assentos no Parlamento Europeu, o principal grupo parlamentar é o Partido Popular Europeu, abreviado como PPE. Este grupo liga os partidos eleitos assumidamente de centro-direita democrata-cristã e liberal-conservadora, integrando os nacionais PSD e CDS-PP, o Partido Popular espanhol, a União Democrata-Cristã alemã (também conhecida como o partido da Chanceler Angela Merkel) e até recentemente o Fidesz do Primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán. Historicamente hegemónico, o PPE venceu a maioria das eleições europeias desde 1979 e preside a Comissão Europeia desde 2005, representados por Durão Barroso, Jean-Claude Juncker e, atualmente, Ursula von der Leyen. O grupo é liderado pelo alemão bávaro Manfred Weber.

Em segundo posiciona-se o S&D, a Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas, que une os partidos de centro-esquerda social-democrata, tais como os Partidos Socialistas português e francês, e os Partidos Social-Democratas sueco e romeno. Internamente, um cisma ideológico tem vindo a alargar-se entre os “social-democratas ocidentais”, progressistas em questões ético-culturais, e os “social-democratas leste-europeus”, nativistas e conservadores. Como segunda maior força política no hemiciclo de Bruxelas, o S&D está historicamente conotado com o legado da Presidência na Comissão Europeia do francês Jacques Delors, o arquiteto por detrás da construção do mercado comum europeu, do euro e da própria União Europeia como hoje conhecemos. São encabeçados no Parlamento Europeu pela espanhola Iratxe García.

Ainda no pódio temos o Renew Europe, aproximadamente traduzido para “Renovar a Europa”, fruto da fusão do antigo grupo dos liberais — a Aliança dos Liberais e Democratas pela Europa ou ALDE — com o novo partido do Presidente francês Emmanuel Macron e uma coligação de dois partidos anticorrupção romenos (USR e PLUS). Curiosamente, não seria a primeira vez que os liberais alterariam o seu nome de forma a acolher um partido-membro novo, quando em 1985 o Grupo Liberal e Democrático passou a ser o Grupo ‘Reformista’ Liberal e Democrático, por recusa do PSD de Cavaco Silva se cunhar de liberal. O Renew comporta dentro de si partidos de várias convicções do pensamento liberal e centristas, tais como o holandês D66, o austríaco NEOS e o finlandês Partido do Centro. O romeno Dacian Cioloş é o líder deste novo grupo. O PPE, o S&D e o Renew, compõem a “grande coligação” maioritária que forma a atual Comissão Europeia.

No extremo da ala direita parlamentar, o recém-fundado Identidade e Democracia. O ID surge da intenção de convergir os partidos nacionalistas e eurocéticos de direita e extrema-direita numa plataforma política una que combata a imigração ilegal, que preserva a hereditariedade face ao multiculturalismo e que concretize a reforma do projeto europeu em prole de uma “Europa das Nações”. Mesmo se recente, o grupo nacionalista já se encontra entre as quatro principais forças políticas em número de assentos no Parlamento Europeu. Entre os partidos integrantes temos a Liga de Itália, a Alternativa pela Alemanha, o Reagrupamento Nacional de França e o Partido Popular Dinamarquês. Desde a saída do Fidesz de Orbán do PPE têm surgido várias especulações que o partido húngaro poderá unir forças com o ID. O representante do grupo é o italiano Marco Zanni.

De seguida temos os Verdes/Aliança Livre Europeia. Este grupo parlamentar subdivide-se em duas visões ideológicas — o ecologismo dos Verdes e o separatismo/regionalismo da Aliança Livre Europeia. Entre os partidos que compõem este grupo político existe a Aliança 90/Os Verdes da Alemanha, os independentistas da Esquerda Republicana da Catalunha e os Partidos Piratas checo e alemão. Ao longo dos anos, os Verdes/ALE têm vindo a crescer como força política europeia, obtendo em 2019 resultados que ultrapassaram quaisquer expetativas criadas pelas médias de sondagem, criando uma maior coesão entre os dois espaços ecológico-regionalista e atraindo novos partidos políticos com visões ideologicamente distintas — tais como o eurofederalista Volt, os mencionados Partidos Piratas e o partido defensor dos direitos dos animais PAN. O grupo é presidido pela alemã Ska Keller e o belga Philippe Lamberts.

Em penúltimo lugar, o grupo da Europa dos Conservadores e Reformistas. O ECR foi fundado em 2009 por iniciativa do Partido Conservador Britânico de David Cameron, que considerava o Partido Popular Europeu como demasiado apologista do ideário federalista europeu. A sua identidade baseia-se nos princípios de livre-mercado e numa visão “Eurorealista” — em contraste com visões apologéticas da integração europeia —, em que os Estados-nações se encontram no centro de decisão política e as suas soberanias são invioláveis. A visão política desenvolvida pelo ECR atraiu a atenção de vozes políticas desde a direita moderada até à radical, em partidos como a Solidariedade e Liberdade da Eslováquia, a Nova Aliança Flamenga da Bélgica, o VOX de Espanha e o Lei e Justiça da Polónia. Os atuais representantes do grupo são o polaco Ryszard Legutko e o italiano Raffaele Fitto.

Por fim, no extremo inverso do hemiciclo temos o grupo da Esquerda no Parlamento Europeu, até recentemente conhecida como o Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Nórdica Verde, abreviada como GUE/NGL. Embora em tempos uma das forças mais eurocríticas no Parlamento Europeu, o Grupo da Esquerda hoje defende uma integração transnacional alternativa mais solidária e igualitária, contra o monetarismo europeu, o sistema de livre mercado em prática e os seus abusos. Entre os partidos confederados nesta aliança parlamentar de esquerda temos os nacionais BE e PCP, o Syriza da Grécia, o Unidas Podemos de Espanha e o Sinn Féin da República da Irlanda. O alemão Martin Schirdewan e a francesa Manon Aubry são os novos membros que presidem o grupo.

O Parlamento Europeu, como casa da democracia europeia, define-se pela sua pluralidade e os compromissos que são construídos a partir desta, seja na esquerda, no centro ou na direita. Porém, certos progressos democráticos que surgem destes compromissos, ainda que incompletos, como o processo Spitzenkandidaten, têm vindo a ser bloqueados por instituições que carecem de transparência e de escrutínio perante os cidadãos europeus, tais como o Conselho Europeu e o Conselho da União Europeia. A letargia reformista destas instituições contribui para a descredibilização do projeto europeu e de quaisquer ambições de democratização do mesmo. Órgãos institucionais caminhando em sentidos divergentes, sucedendo em cenários confusos como… letões a depararem-se com cartazes de um holandês desconhecido — que aparenta querer ser o presidente para o futuro da Europa.

Artigo por Guilherme Ferreira Resende

Updated: